terça-feira, 12 de agosto de 2014

O que significa a prontidão para a alfabetização

                Do livro Ler e escrever na Educação Infantil. Discutindo práticas pedagógicas. Ana carolina Perrusi Brandão e Ester Calland de Sousa Rosa (orgs.)



  A prontidão para a alfabetização significaria, de acor-
do com Poppovic e Moraes (1966, p. 5), “[...] ter um nível suficiente,
sob determinados aspectos, para iniciar o processo da função simbóli-
ca que é a leitura e sua transposição gráfica, que é a escrita”. Com base nesse conceito, as autoras propuseram na época um “Programa para
o desenvolvimento de funções específicas” contendo exercícios que
visavam ao trabalho com diferentes aptidões e atitudes consideradas
prévias à aprendizagem da escrita. Conforme enfatizavam as autoras,
a finalidade não era “entrar no campo da alfabetização, mas sim dar
elementos à professora para a elaboração de um programa graduado
de exercitação que pusesse as crianças em condições adequadas
para enfrentar esse processo” (p. 23). Os exercícios propostos eram
divididos em três etapas: (1) os sentidos (a vista, o olfato, o paladar, a
audição e o tato), (2) as funções específicas (i.e. noções quantitativas,
orientação espacial e temporal e esquema corporal) e (3) o grafismo.
As autoras salientavam ainda que:
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                 O treinamento motor, que está incluído em todos os exercí-
                 cios, é feito em forma de recorte e colagem na 1a e 2a etapas
                 e com o uso do lápis na 3a etapa. O uso de formas gráficas
                 como números e letras não significa uma entrada no campo da
                 escrita, o que seria totalmente prematuro, antes da aquisição
                 da leitura, mas apenas um treinamento motor da movimen-
                 tação direcional certa que a criança necessitará mais tarde
                 (Poppovic; Moraes, 1966, p. 23).
      Com base nesses princípios, pode-se concluir que o trabalho na
Educação Infantil deveria evitar qualquer contato direto com a leitura
e a escrita e se concentrar no estímulo aos chamados “pré-requisitos”
para aprender a ler e escrever, tais como o desenvolvimento de ha-
bilidades de coordenação viso-motora, memória visual e auditiva,
orientação espacial, articulação adequada de palavras, certo grau de
atenção e concentração, boa alimentação, entre outros. Conforme
salienta Ferreiro (1993), essas ideias justificaram a manutenção do
“pré-escolar, ‘assepticamente’ isolado da língua escrita [...], desen-
volvendo habilidades prévias que, segundo parece, ‘maturam’ em
contextos alheios à língua escrita” (p. 65, grifos da autora).
      Observa-se que tal concepção sobre a aprendizagem da leitura e
da escrita teve um impacto na orientação de políticas públicas para o
atendimento a crianças em pré-escolas nos anos 1970 e 1980 do século
XX (ver Kramer, 1992), bem como nas atividades realizadas em salas
de Educação Infantil por todo o País. Porém, já nos anos 1920 e 1930,
pesquisadores questionavam essas noções. Vygotsky (1984), por exem-
plo, salientava que bem antes dos seis anos as crianças eram capazes de
descobrir a função simbólica da escrita e até começar a ler aos quatro
anos e meio. Para ele, o problema maior não era a idade em que a criança
seria alfabetizada, mas sim o fato de a escrita ser “ensinada como uma
habilidade motora, e não como uma atividade cultural complexa” (p.
133). Assim, criticava o trabalho da maioria das escolas de sua época,
incluindo as propostas de Montessori, por desconsiderarem que a escrita
deveria ter significado para as crianças. Ou seja, para Vygostsky, a escrita
precisaria ser ensinada como algo relevante para a vida, pois somente
dessa forma ela se desenvolveria não como “hábito de mão e dedos, mas
como uma forma nova e complexa de linguagem” (p. 133).
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      O discurso da prontidão também foi questionado por profis-
sionais da área de educação que apontavam a baixa qualidade dos
“exercícios preparatórios”: muito repetitivos e vazios de significado
para as crianças, além de obrigarem que elas ficassem presas durante
muito tempo a atividades com papel e lápis. Porém, o maior golpe
nesse discurso foi o fato de que o fracasso na alfabetização continuava
a ocorrer mesmo com o alto investimento público na disseminação
de programas que apostavam em numerosos exercícios preparatórios
para garantir a maturação almejada para a alfabetização.
      Diante desses argumentos, observamos a abertura de pelo menos
três novos caminhos para o trabalho com a linguagem escrita nas salas
de Educação Infantil, conforme apresentaremos a seguir.
      Caminho 1: “A obrigação da alfabetização”
      Se não há sustentação teórica ou empírica para a ideia de
pré-requisitos para alfabetização, por que esperar até os seis ou
sete anos para alfabetizar as crianças? Os que adotam esse modo de
pensar defendem, portanto, que as crianças concluam a Educação
Infantil já dominando certas associações grafofônicas, copiando
letras, palavras e pequenos textos, bem como lendo e escrevendo
algumas palavras e frases.
      Os exercícios preparatórios são, assim, substituídos pelo traba-
lho exaustivo com letras, iniciando pelo reconhecimento e escrita de
vogais, seguindo-se o trabalho com as consoantes e famílias silábicas.
      Subjacente a esse tipo de trabalho na Educação Infantil está a
ideia de que a aquisição da leitura e escrita corresponde à aquisição de
um código de transcrição do escrito para o oral e vice-versa, bastando
à criança memorizar as associações som-grafia para ser alfabetizada.
Semelhantemente à abordagem dos pré-requisitos, a ênfase está no
desenvolvimento de habilidades perceptuais e motoras. A diferença é
que letras e palavras são utilizadas para o treino perceptual e motor,
em vez de outros traçados, formas ou figuras.
      O trecho a seguir, extraído de uma observação em uma sala com
crianças na última etapa da Educação Infantil, sintetiza de forma
bastante clara as práticas associadas ao que chamamos aqui de “a
obrigação da alfabetização”. Vejamos:
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Após conversar informalmente com as crianças, a profes-
sora iniciou um trabalho de revisão das vogais e das conso-
antes. Ela escreveu no quadro algumas “famílias silábicas”
e palavras formadas por sílabas correspondentes a essas
famílias ou a outras já trabalhadas, conforme transcrito:
             “Revisão das famílias” – a e i o u
             ba, be, bi, bo, bu             bo – la
             la, le, li, lo, lu             da – do
             da, de, di, do, du             sa – po
             sa, se, si, so, su             la – ta
             ta, te, ti, to, tu             pi – pa
             ai, ei, iu, oi, ui             ta – tu
“Tia juntou a letrinha a com i formando ai. Prestem aten-
ção agora! Tia juntou outra letrinha e com i formando ei.
Assim por diante”.
A professora continuou: “Olhem, primeiro eu falo as
famílias e vocês escutam. Depois vocês vão repetindo
cada família. Quando vocês não souberem, eu ajudo
a pronunciar”.
Ela começou dizendo a primeira sílaba (ba) para que os
alunos continuassem a sequência: (be, bi, bo, bu). Ao chegar
à família do “t”, a professora disse: “Vocês não estudaram
em casa, têm que estudar!”.
Durante a atividade, as crianças observavam o quadro e
repetiam as famílias. Algumas erravam, outras ficavam
caladas, poucas sabiam as famílias de modo completo.
Depois a professora passou uma tarefa para que os alunos
exercitassem as famílias silábicas. A tarefa dizia: “Vamos
fazer as famílias”. Em seguida, apresentou as famílias
silábicas do BA, MA, LA, DA e pediu que as crianças
copiassem duas vezes as sílabas de cada família.
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       Caminho 2: “O letramento sem letras!”
       Como relação ao tipo de trabalho descrito anteriormente (que,
infelizmente, tem ganhado muito espaço na Educação Infantil),
vemos o surgimento de outro modo de pensar. Este foi reconhecido
como “o letramento sem letras”,1 caracterizando-se a ênfase dada a
outros tipos de linguagem na Educação Infantil, como a corporal, a
musical, a gráfica, entre outras, banindo-se a linguagem escrita do
trabalho com crianças pequenas. Nesse tipo de abordagem, portanto,
a alfabetização, de modo contrário ao que propõe o caminho anterior,
não é concebida como objeto do trabalho educativo, sendo, em ge-
ral, tomada como um “conteúdo escolar” e, portanto, proibido para
crianças da Educação Infantil.
       Tal concepção é, sob nosso ponto de vista, equivocada por
vários motivos, a começar pela perspectiva preconceituosa em
relação à escola, vista, necessariamente, como o espaço “da disci-
plina rígida, da falta de criatividade, de espontaneidade, lugar que
forma alunos passivos por meio de práticas repetitivas, vazias de
significado, distantes das suas vidas e dos seus interesses” (Bran-
dão, 2009, p. 105). Em contraposição, a Educação Infantil, é vista
como um ambiente “antiescolar”
                  [...] em que se respeitam as suas singularidades (das crian-
                  ças), em que há espaço para a brincadeira e o prazer, para
                  o movimento do seu corpo, para criar e dialogar, local em
                  que se pode experimentar, investigar, expressar sentimentos,
                  construir a identidade e aprender numa atmosfera acolhedora
                  e desafiante (p. 105).
       Porém, ao olhar ao nosso redor, discordamos tanto da ideia de
que a Educação Infantil represente sempre esse ideal descrito quanto
da ideia de que toda escola resulte, necessariamente, na formação
de crianças apáticas e de práticas que desrespeitem a infância
(Brandão, 2009). Especificamente, também não consideramos que
  Tal posição é também reconhecida por Magda Soares em entrevista concedida para
1
  a revista Educação, em uma publicação especial, intitulada Guia da Alfabetização,
  n. 1, São Paulo: Ed. Segmento, 2010.
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um trabalho em direção à alfabetização feito na Educação Infantil
ou na escolaridade obrigatória tenha que incluir exercícios exaus-
tivos de memorização e cópia de letras e famílias silábicas. Nesse
sentido, estamos de acordo com Stemmer (2007, p. 136) quando a
autora salienta que:
               Como comumente a aprendizagem da leitura e da escrita
               não tem sido sequer considerada na educação infantil, o que
               existe é um total desconhecimento do assunto. O resultado
               mais imediato é que os professores diante do evidente inte-
               resse demonstrado pelas crianças em querer aprender a ler
               e escrever ficam sem saber o que fazer, e em muitos casos,
               acabam por reproduzir práticas de ensino a que eles próprios
               estiveram submetidos em suas experiências escolares, sem,
               no entanto, terem o conhecimento necessário para compreender
               as razões do que fazem e sem subsídio teórico algum para
               alicerçar suas práticas.
     Para não cair nesse erro, defendemos, portanto, a necessidade
de falar, sim, na Educação Infantil, sobre escola, ensino, escrita,
alfabetização, buscando, porém, especificar a escola, o ensino e a
alfabetização de que estamos falando. É isso que pretendemos fazer
nos próximos itens deste capítulo.
     Caminho 3: “Ler e escrever com significado na
     Educação Infantil”

     Pode-se dizer que este modo de pensar nega os outros dois ci-
tados anteriormente, pois, neste caso, não se quer obrigar a criança a
concluir a Educação Infantil alfabetizada ou “lendo palavras simples”,
por meio de exercícios repetitivos de cópia, ditado e leitura de letras,
sílabas e palavras; por outro lado, também não se pretende que ela
mergulhe em um mundo que exclui textos, palavras ou letras e que,
portanto, não existe na maioria dos quadrantes de nosso país.
     Este terceiro caminho é, assim, inspirado, por um lado, nas
ideias de Ferreiro e Teberosky sobre o processo de alfabetização, que
começaram a ser divulgadas no Brasil, ao final da década de 1970,
trazendo um grande impacto para as formas de pensar a alfabetização,
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bem como para a reflexão sobre o próprio papel da Educação Infantil
e, por outro lado, na perspectiva sociointeracionista que alerta para
a importância do papel da escola na inserção das crianças na cultura
escrita desde cedo. Assim, nessa perspectiva, a alfabetização passa
a ser entendida como um longo processo que começa bem antes do
ano escolar em que se espera que a criança seja alfabetizada e consiga
ler e escrever pequenos textos. Nas palavras de Ferreiro (1993, p.
39), isto significa que
                [...] não é obrigatório dar aulas de alfabetização na pré-escola,
                porém é possível dar múltiplas oportunidades para ver a pro-
                fessora ler e escrever; para explorar semelhanças e diferenças
                entre textos escritos; para explorar o espaço gráfico e distinguir
                entre desenho e escrita; para perguntar e ser respondido; para
                tentar copiar ou construir uma escrita; para manifestar sua
                curiosidade em compreender essas marcas estranhas que os
                adultos põem nos mais diversos objetos.
      Ao investigar o que as crianças sabem/pensam sobre a escrita
antes de serem alfabetizadas, Ferreiro e colaboradores mostraram
que elas formulam hipóteses acerca das funções e funcionamento da
escrita, queiram ou não os seus professores. Porém, Ferreiro (1993)
adverte que as oportunidades de interagir de modo significativo com
a escrita não são iguais para todas as crianças. Assim salienta que:
                Há crianças que chegam à escola sabendo que a escrita serve
                para escrever coisas inteligentes, divertidas ou importantes.
                Essas são as que terminam de alfabetizar-se na escola, mas co-
                meçaram a alfabetizar-se muito antes, através da possibilidade
                de entrar em contato, de interagir com a língua escrita. (p. 23)
      Conclui-se, portanto, que na Educação Infantil muito pode ser
feito na direção apontada, especialmente, para as crianças que te-
riam menos oportunidades de participar de situações mediadas pela
escrita, seja por meio da leitura ou da produção de textos. Assim,
concordamos inteiramente com Solé (2003), quando ela afirma que:
                Não se trata de acelerar nada, nem de substituir a tarefa de
                outras etapas com relação a esse conteúdo (a leitura); trata-se
simplesmente de tornar natural o ensino e aprendizagem de algo que coexiste  com as crianças, que interessa a elas , que está presente em sua vida e na nossa e que não tem sentido algum ignorar.(p.75). Continue a leitura dos capítulos 1 e 2 do livro aqui.


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